Lisboa,
final do século XV. Na praia ribeirinha, estendia-se a Ribeira das Naus, com
suas oficinas e seus barcos prestes a ser lançados ao Tejo. Ao longo dela,
instalavam-se os malcozinhados, pequenas tabernas fumacentas nas quais se
reuniam marinheiros, prostitutas, escravos e trabalhadores braçais pobres para
consumir sardinhas fritas e vinho barato. Nas águas turvas e calmas do rio
desfilavam tanto embarcações transportando alimentos dos arredores, quanto
barcos enfeitados, nos quais músicos embalavam a conversa dos bem-vestidos
membros da Corte de d. Manuel I.
No
porto, tremulavam naus mercantes vindas de Gênova, Veneza, Normandia, Bristol
ou de Flandres. Em terra, prontos para embarcar nas caravelas que fariam a
Carreira das Índias, aglomeravam-se marujos acostumados àquele tipo de vida,
além de “vadios e desobrigados” recrutados pelas ruas de outras cidades.
Quem
era essa gente que mudaria o mundo? As tripulações apresentavam, desde o século
XV, um leque de marinheiros de idiomas e origens diferentes. Entre os
portugueses, era comum a presença de escravos negros. Quando estenderam suas
campanhas ao Norte da África, os lusos procuravam quem falasse árabe ou
recrutavam intérpretes capazes de se comunicar com os mouros. No imaginário da época,
esses marinheiros eram vistos como “criminosos da pior espécie”, cujas penas
por decapitação ou enforcamento podiam ser comutadas pelo serviço marítimo. Os
testemunhos eram de que quase todos os tripulantes dos navios eram “adúlteros, malsins,
alcoviteiros, ladrões, homens que acutilam e matam por dinheiro e outros de
semelhante raça”. Muitas prostitutas subiam a bordo de forma clandestina,
enganadas pela marujada, embarcadas por magistrados portugueses ou soldados.
Quando
uma dessas passageiras era encontrada, deixavam-na no porto seguinte ou a
isolavam da tripulação. Os pobres embarcados dependiam da generosidade de um
capelão para arranjar-lhes roupas com as quais pudessem se cobrir. Outros
procuravam um capitão rico, capaz de provê-los de “vestidos e camisas
bastantes” para os meses que ficavam longe da terra natal. Esses marinheiros,
geralmente, portavam calções compridos e volumosos a fim de não atrapalhar os
movimentos exigidos pelas manobras de navegação. Os calções eram amarrados à
cintura por cordões e complementavam-se com o schaube, um sobretudo em forma de
batina, sem mangas. Pequenas – cerca de vinte metros de comprimento –, ágeis,
capazes de avançar em zigue-zague contra o vento e dotadas de artilharia
pesada, as caravelas eram consideradas os melhores veleiros a navegar em
alto-mar. Mas, apesar de a embarcação ser boa, o cotidiano das viagens
ultramarinas não era fácil. A precária higiene a bordo começava pelo espaço
restrito que era utilizado pelos passageiros. Inicialmente de apenas um convés,
as caravelas tendem a crescer. Em uma nau de três conveses ou pavimentos, dois
eram utilizados para a carga da Coroa, dos mercadores e dos passageiros. O
terceiro era ocupado em sua maior parte pelo armazenamento de água, vinho,
madeira e outros objetos úteis. Nos “castelos” das embarcações encontravam-se
as câmaras dos oficiais – capitão, mestre, piloto, feitor, escrivão – e dos
marinheiros, armazenando-se, no mesmo local, pólvora, biscoitos, velas, panos,
etc.
O
banho a bordo era impossível. Além de não existir este hábito de higiene, a
água potável era destinada ao consumo e ao preparo de alimentos. Nas pessoas e
na comida, proliferavam todos os tipos de parasitas: piolhos, pulgas e percevejos.
Confinados em cubículos, passageiros satisfaziam as necessidades fisiológicas,
vomitavam ou escarravam próximos de quem comia. Por isso mesmo, costumava-se embarcar
alguns litros de água-de-flor, destinada a disfarçar os odores nauseantes, além
de ervas aromáticas, queimadas com a mesma finalidade. Em meio ao constante mau
cheiro e associado ao balanço natural, o enjoamento era constante. A má higiene
a bordo costumava contaminar os alimentos e a água embarcada. Os fluxos de
ventre, para os quais não havia cura, ceifavam rapidamente indivíduos já
desidratados e desnutridos.
A
alimentação durante as longas viagens sempre foi um problema para a Coroa. A
falta habitual de víveres em Portugal impedia que os navios fossem abastecidos
com a quantidade suficiente de alimentos. O Armazém Real, encarregado do
fornecimento, com certa frequência simplesmente deixava de fazê-lo. A fome
crônica e a debilidade física colaboravam para a morte de uma parcela
importante dos marinheiros. Em Memórias de um soldado na Índia, Francisco
Rodrigues Silveira relatava, queixoso, que eram raros os “soldados que escapam
das corrupções das gengivas [o temido escorbuto, doença causada pela falta de
vitamina C], febres, fluxos do ventre e outra grande cópia de enfermidades…”. Além
de escassos, os alimentos muitas vezes estragavam antes mesmo de começar a viagem.
Armazenados em porões úmidos, se sobreviviam ao embarque, apodreciam
rapidamente ao longo da jornada.
O
rol dos mantimentos costumava incluir biscoitos, carne salgada, peixe seco
(principalmente bacalhau salgado), banha, lentilhas, arroz, favas, cebolas,
alho, sal, azeite, vinagre, mel, passas, trigo, vinho e água. Nem todos os
presentes tinham acesso aos víveres, controlados rigorosamente por um
despenseiro ou pelo próprio capitão. Oficiais mais graduados ficavam com os
produtos que estivessem em melhores condições, muitas vezes vendendo-os numa
espécie de mercado negro a outros viajantes famintos. Grumetes e marinheiros
pobres eram obrigados a consumir “biscoito todo podre de baratas, e com bolor
mui fedorento e fétido”, entre outros alimentos em adiantado estado de decomposição.
Mel e passas eram oferecidos aos doentes da tripulação nobre. Febres altas e
delírios, que costumavam atingir muitos dos tripulantes, decorriam da ingestão
de carnes excessivamente salgadas e podres regadas a vinho avinagrado. Nas calmarias,
quando a nau poderia ficar horas ou dias sem se mover, sob o calor tórrido dos
trópicos, os marinheiros famintos ingeriam de tudo: sola de sapatos, couro dos
baús, papéis, biscoitos repletos de larvas de insetos, ratos, animais mortos e mesmo
carne humana. Muitos matavam a sede com a própria urina.
Outros
preferiam o suicídio a morrer de sede. Na realidade, a dramática situação dos
navegadores não diferia muito da enfrentada pelos camponeses em terra firme. Um
trabalhador que cavasse de sol a sol, sete dias por semana, não ganhava mais do
que dois tostões por dia. A quantia mal lhe permitia comprar alguns pedaços de
pão. O que dizer do sustento de famílias inteiras, sem alimentos ou
vestimentas? Um grande número de camponeses pobres preferia fugir da fome
enfrentando os riscos do mar, mesmo conhecendo as privações a que seriam
submetidos na Carreira das Índias.
Mary del Priore - História Hoje - Site: aqui
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