Família unida na morte. Magda e Joseph Goebbels com os filhos: Só Harald
(de uniforme), filho do primeiro casamento de Magda com magnata
herdeiro da BMW, sobreviveu
- Reprodução |
Suicídios
contaminaram Alemanha nos dias finais da Segunda Guerra
Livro
revela que exemplos de Hitler e Goebbels não foi fenômeno restrito à cúpula
nazista
Graça
Magalhães-Ruether
BERLIM
- O lugar onde o pior ditador do século XX encontrou o seu fim fica no subsolo
de um estacionamento de carros, junto a um prédio de apartamentos simples, de
arquitetura despojada típica da era comunista, no centro de Berlim. A aparência
banal do terreno que fica sobre o bunker do Führer é intencional, projetada
pelo regime comunista da extinta República Democrática Alemã, onde ficava essa
parte da rua Wilhelm no período de 1949 até 1989. No bunker onde a cúpula do
regime nazista procurou proteção quando a derrota já parecia inevitável,
ocorreram cenas dramáticas nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, que
terminaram com a morte de todos. Mas o clima de tragédia dos derrotados não
ficou limitado à cúpula: contaminou a Alemanha. Num livro sobre como os alemães
reagiram à derrota nas semanas e meses de transição, pouco antes da chegada dos
vencedores, o historiador Florian Huber revela que o suicídio de Hitler e
Goebbels não foi um caso isolado, mas parte de uma histeria nacional que tomou
conta da Alemanha.
O
mito do soldado nazista que lutou por sua ideologia racista até a última gota
de sangue precisa ser revisto — contou Huber em entrevista ao GLOBO, pouco
depois de ler trechos da obra “Kind, versprich mir, dass du dich nicht
erschiesst” (“Criança, prometa-me que não vais te suicidar”, em tradução
livre), escrita em forma de reportagem, no salão literário da Casa Bertolt
Brecht, em Berlim.
SEM VIDA DEPOIS DO FÜHRER
Pouco
depois do suicídio de Hitler e Eva Braun, Joseph e Magda Goebbels mataram
primeiro as filhas Helga, de 12 anos, Hilde, 11 anos, Holde, 8 anos, Hedda, 6
anos, e Heide, de 4 anos, bem como o único filho, Helmut, de 9 anos (todos os
nomes começavam com H em homenagem a Hitler), antes de dar fim às suas próprias
vidas. “A vida no mundo que vai chegar depois do Führer e do nacional-socialismo
não vale a pena”, escreveu Magda na carta de despedida ao seu filho mais velho,
Harald Quandt, o único que sobreviveu. Harald (1921-1967), que por parte de pai
pertencia à familia dos magnatas da empresa BMW, era filho do primeiro casamento
de Magda com o industrial Günther Quandt, de quem ela se divorciou para casar,
mais tarde, com o nazista Joseph Goebbels.
‘Aldeia do suicídio’. Rua Adolf Hitler em Demmin, - Reprodução |
Segundo
Huber, o suicídio coletivo no centro do poder nazista começou já em janeiro de
1945, quando nem o próprio ditador conseguia acreditar que seria possível uma
vitória. No livro, o historiador diz que a “histeria nacional de suicídio” é o
capítulo mais obscuro da história do Terceiro Reich. Foram dezenas de milhares
de suicídios em toda a Alemanha. Só em Berlim, mais de seis mil pessoas
suicidaram-se nos últimos dias da guerra. O clima de medo era não somente em
relação aos soviéticos: também as grandes cidades ocidentais, como Munique ou
Colônia, que foram libertadas pelos aliados, caíram na febre da maior onda de
suicídio do mundo moderno.
Os
números, no entanto, são apenas aproximados, porque nunca houve um levantamento
exato dos casos, que até agora não tinham despertado atenção. Eram homens e
mulheres que entraram em pânico por medo do futuro em um país ocupado, depois
de uma ditadura durante a qual haviam esquecido qualquer resquício de
humanidade.
De
um lado havia o confronto com um mundo que estava desmoronando. Depois de mais
de 12 anos de regime nazista, as pessoas se deparavam com o nada, como se o
mundo tivesse acabado. Mas havia também a convicção da culpa que haviam
acumulado nesses anos e o medo terrível de que os inimigos vitoriosos na guerra
praticassem contra elas as mesmas atrocidades que os nazistas haviam cometido
contra os judeus — explica Huber.
No
cemitério de Demmin, cidade que tem hoje 12,2 mil habitantes, um monumento
lembra a tragédia que tomou conta do lugar no início de 1945. Quando os
soviéticos atingiram Demmin, no estado de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, 230
km ao norte de Berlim, um pânico coletivo tomou conta da população. Em apenas
três dias, quase mil pessoas se mataram.
Mães e pais matavam os filhos por afogamento,
estrangulamento ou com um tiro na cabeça, para depois fazer o mesmo consigo. A
tragédia marcou para sempre a vida de muitas pessoas que conseguiam matar os
filhos mas depois não tinham coragem de se matar — revela Huber.
Apenas
um homem de Demmin, entre as centenas que sobreviveram depois de matar a
família (e não ter tido coragem de tirar a própria vida), foi julgado pelo
crime: o assassinato da esposa e dos dois filhos a tiros. O julgamento terminou
com absolvição, porque os juízes consideraram o pai vítima de uma situação
extrema, sem culpabilidade e isento de pena, do ponto de vista jurídico.
As
vítimas da tragédia de Demmin estão sepultadas em uma cova coletiva. Os mortos
eram enterrados apenas com a roupa que usavam no momento final ou em caixões de
papelão — com tantos cadáveres em tão pouco tempo, não havia mais caixões de
madeira disponíveis. As lápides, improvisadas, às vezes nem revelam os nomes,
apenas descrições sobre a morte, como “menina enforcada pelo avô”, “menino
afogado pela mãe” ou “crianças levadas pela mãe no suicídio”.
Manfred
Schuster tinha 10 anos quando foi testemunha da tragédia de Demmin. Ele viu uma
mãe pular no rio Peene, tendo os filhos pequenos fixados junto ao próprio corpo
com a ajuda de uma corda de varal, usada para pendurar roupas.
Duas das crianças conseguiram se desamarrar e
nadar até a margem, de onde observaram a última luta dos irmãos para não
afundar nas águas junto com a mãe — lembra Schuster, hoje com 80 anos, filho de
um soldado da Wehrmacht.
SUICÍDIOS
ERAM ROTINA NO PÓS-GUERRA
Karl
Schlosser, também de 80 anos, é o último sobrevivente das famílias suicidas.
Ele lembra como conseguiu escapar da tentativa da mãe de matá-lo com uma
navalha de barbear.
Minha
mãe preferiu matar os dois filhos e seu pai, meu avô, para depois se suicidar,
em vez de viver em uma cidade dominada pelas tropas do ditador soviético Josef
Stalin — recorda Schlosser, que acompanhou a “epidemia de suicídio” em sua
cidade natal como a principal rotina do final da guerra.
Todos
os dias, ele via corpos sendo levados pela correnteza do rio, adultos e
crianças enforcados que ainda estavam pendurados nas árvores ou pessoas mortas
com a fisionomia desfigurada por causa do veneno que haviam tomado ou recebido
dos parentes próximos. O veneno mais consumido era o cianureto de potássio, e,
segundo Schlosser, as pessoas falavam sobre o cianureto na taça de vinho tinto
como se fosse um pouco de leite no café.
Toda
a elite do regime nazista tinha doses de cianureto que planejava usar para o
caso de cair nas mãos do inimigo. Com esse veneno, alguns condenados no
Tribunal de Nuremberg evitaram uma execução, morrendo antes — explica o
historiador e autor do livro. — Esse veneno era muito popular porque qualquer
farmacêutico conseguia produzi-lo artesanalmente e porque ele oferecia a
possibilidade de uma morte rápida.
Huber
esteve na região do Palatinado, no Sudoeste da Alemanha, e teve a ideia de
escrever o livro ao recordar as narrativas do seu pai, que tinha 11 anos quando
a guerra acabou na região. Os soldados alemães tinham ido embora, os americanos
eram esperados, mas não haviam ainda chegado, e as pessoas começaram a acabar
com suas vidas como se tivessem perdido o equilíbrio mental.
Meu
pai contava que havia um clima de profunda incerteza, talvez porque as pessoas,
no fundo, já soubessem que quase tudo que era lei no regime nazista passaria a
ser visto como crime contra a Humanidade — conta Huber.
JORNAL - O GLOBO - Acesso: aqui
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