Prostituta no início do século XX. Gregas, inglesas ou brasileira, as prostitutas recorriam à polícia em busca de reparação pelas injustiças sofridas. |
Justiça da luxúria
Prostitutas não hesitavam em recorrer a policiais e
advogados quando enganadas por clientes
Marina Maria de Lira Rocha*
Helena Petro
era uma prostituta grega de 26 anos que vivia na Rua da Conceição, no Centro do
Rio de Janeiro. O ano é 1908, quando a circulação de notas falsas de dinheiro
era comum no país. Ao tentar trocar num botequim uma cédula de 50 mil-réis que
recebera por seus serviços, Helena descobriu que fora enganada por um cliente.
Sem titubear, levou o culpado à delegacia para denunciá-lo por pagar com
dinheiro falso.
Pode parecer
estranho uma prostituta recorrer justamente à polícia – que normalmente é
associada à repressão a essa atividade – para receber seu pagamento, mas o
Arquivo da Justiça do Rio prova que isso aconteceu com frequência nas zonas de
meretrício da cidade entre 1907 e 1917.
Geralmente
tratados pelos agentes do Estado como perturbadores da ordem, os que viviam da
prostituição também sabiam usar a legislação quando tinham seus direitos
violados. Os cafetões, que ganhavam dinheiro explorando a prostituição,
costumavam recorrer à lei para se defender quando ameaçados. Mas, enquanto as
prostitutas iam à delegacia para denunciar os maus pagadores, os que viviam do
lenocínio (exploração de pessoas para fins sexuais), a maioria cidadãos
estrangeiros, iam atrás de advogados para ajudá-los quando eram presos. Dessa
forma, a estrutura repressiva criada pela elite, representada pela polícia e
pela Justiça, acabava servindo também para defender os interesses dessas “profissões”
excluídas.
Nos processos
do Rio, as mulheres que vendiam o corpo tinham, em geral, entre 25 e 30 anos;
eram, na maioria, estrangeiras e não escondiam de onde tiravam seu sustento.
Pediam pagamento adiantado e costumavam levar o cliente à polícia se
desconfiassem que ele estava dando uma nota falsa.
A prostituta
inglesa Clara Double é um exemplo. Após receber uma nota de 50 mil-réis do
cliente português José de Almeida, perguntou a dois amigos que bebiam cerveja
na Rua Senador Dantas – uma prostituta russa e um negociante português – se a
cédula era verdadeira. O trio se dirigiu ao Café Avenida, onde constatou que se
tratava de dinheiro falso. O passo seguinte foi levar o cliente à delegacia.
Incidentes
como esse resultavam em processos de sumário-crime, instrumento aplicado nos
casos de uso de moeda falsa como atentado à fé pública. A punição prevista no
Código Penal de 1890 era de um a quatro anos de prisão pela fabricação de
dinheiro falso e de dois a quatro por sua introdução e circulação.
No entanto, a
maioria dos crimes ficava impune por falta de provas sobre a intenção do
denunciado de pagar com cédula falsa. Dificilmente algum acusado confessava que
sabia da falsificação. Foi o que aconteceu com o português José de Almeida. O
juiz Olympio de Sá Albuquerque o absolveu argumentando que era um indivíduo
ignorante e analfabeto. Sua
intenção ao passar a nota falsa,
a única que tinha no bolso naquele momento, seria apenas a de impressionar a
prostituta pagando um valor muito superior ao acertado entre os dois.
Apesar da
absolvição, histórias como essa mostram que as prostitutas não estavam
totalmente sós. Elas tinham a solidariedade de pessoas que se dispunham a
testemunhar a seu favor: trabalhadores e donos de casas comerciais, colegas de
meretrício, costureiras, cozinheiras, manicures, garçons. A inglesa Clara teve
a ajuda de outra colega e do negociante, que a acompanharam ao Café Avenida.
Já com uma
lógica comercial, elas valorizavam o direito de receber por seu trabalho. Por
isso, não se envergonhavam de contar a todos quando sofriam uma injustiça e de
ir à polícia em busca de reparação. É o que mostra o exemplo da russa Rosa
Godemberg, que em 1909, ao receber de um cliente português uma nota
aparentemente falsa de 120 mil-réis por um “programa” – ou “serviço”, como se
dizia na época – de 40 mil-réis, saiu gritando pela Rua da Conceição que havia
sido enganada.
A necessidade
de recorrer à polícia é fruto da falta de uma regulamentação específica para
essa atividade – algo que persiste até hoje. A partir do sumário-crime, a
polícia e a Justiça assumem a responsabilidade de mediar as relações
profissionais entre as prostitutas e seus clientes, atuando em favor daquelas
que não receberam devidamente por seus serviços.
Numa época em
que as mulheres começavam a deixar a vida privada e a sair de casa para
trabalhar fora, a polícia precisava disciplinar os costumes nas áreas de
meretrício para que fosse possível o convívio, no mesmo espaço público, entre
as profissionais do sexo e as mulheres ditas “honestas”.
Ao mesmo
tempo, a sociedade esperava que a polícia coibisse a ação dos cafetões. Eles
costumavam ser encarados como os vilões do negócio da prostituição – algozes
das mulheres que exploravam.
Em novembro de
1915, um russo, um francês e um brasileiro foram presos por cafetinagem. O
jornal A Rua elogiou: “As primeiras prisões de cáftens (cafetões) efetuadas
ontem pela polícia (...) foram uma bomba que arrebentou nos arraiais dos
exploradores do lenocínio. Os cafés e bares onde habitualmente se reuniam tão nojentos
indivíduos ficaram vazios. Durante toda a noite, era mais fácil encontrar
libras esterlinas pelas ruas que os profissionais da infâmia (...) A polícia
está fazendo o que prometeu”.
O destino da
maioria dos cafetões estrangeiros presos era enfrentar um processo de expulsão
do país baseado na Lei Adolfo Gordo. Criada em 1907 com o objetivo principal de
reprimir operários estrangeiros que incitassem greves, ela também estabelecia o
lenocínio como motivo para expulsão. A mudança no Código Penal em 1915, que
intensificou a repressão ao tráfico e ao aliciamento de mulheres brancas,
aumentou o número de cafetões a serem mandados para fora do país.
Quando eram
presos, eles assumiam o papel de vítimas. Alegavam que sofriam perseguição pelo
simples fato de serem estrangeiros. Ao serem presos, acusados de lenocínio,
eles recorriam ao dispositivo jurídico do habeas corpus. Para consegui-lo,
alegavam que residiam no país havia muito tempo e que aqui trabalhavam. Assim,
valiam-se da própria Lei Adolfo Gordo, que negava a expulsão de quem já vivia
aqui por mais de dois anos seguidos. Declaravam-se, então, cidadãos
brasileiros.
Grande parte
dos acusados, no fim do processo, não se encontrava mais nas prisões, o que nos
faz pensar que já haviam sido expulsos do país. Foi o que aconteceu com cinco
russos em 1917. Isaac Fiflick, Moyses Fiflick, Jacob Golberg, Samuel Revesck e
Haimam Abraham foram presos e ameaçados de expulsão. Os acusados declararam-se
residentes da Praia da Lapa e trabalhadores: dois ourives, dois comerciantes e
um alfaiate. No fim do processo, o juiz declarou que eles não estavam presos.
Uma exceção
foi o caso da costureira Nelli Vitte, em 1916, conhecida como Argentina, presa
sob acusação de cafetinagem em sua casa, na Rua da Conceição. O advogado criminalista
Evaristo de Morais assumiu sua defesa e conseguiu comprovar que ela vivia no
Rio de Janeiro havia mais de dois anos, tinha uma profissão e nunca havia sido
denunciada por lenocínio.
Estudioso das
patologias sociais do Brasil, Evaristo de Morais se destacou, entre outras
áreas, na defesa das prostitutas. Num ensaio que escreveu em 1921, vanguardista
até para os padrões atuais, ele defendeu a regulamentação da profissão de
meretriz. Propôs que a questão fosse tratada do ponto de vista da saúde pública
e do direito do trabalhador, e não como um problema policial. “Quem conhece as
dificuldades da vida dos proletários; quem sabe até que ponto a grande
indústria moderna, explorando e desmoralizando a mulher trabalhadora, tende a
destruir os elos e freios familiares, que está a par dos ‘salários de fome’, em
especial aplicados ao trabalho feminino, não estranhará também a afirmativa de
Fiaux dizendo que a prostituição deve ser considerada (e respeitada, acrescenta
ele) na constituição atual das nossas sociedades contemporâneas como um
fenômeno econômico, como sendo o complemento do salário insuficiente ou a falta
absoluta de salário”, dizia Evaristo.
Parece que as
ideias do advogado não foram ouvidas com atenção. Quase 90 anos após a
publicação do seu ensaio, a prostituição continua a ser abordada no Brasil
principalmente sob o aspecto da moralidade pública, e não como uma atividade
econômica ou uma questão social. Enquanto isso, persistem a repressão policial,
a exploração de mulheres, homens e crianças e a pobreza entre a maioria dos
profissionais do sexo.
*Marina Maria
de Lira Rocha é autora do artigo “Dos crimes contra fé pública aos crimes
contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao
pudor: visões sobre a prostituição entre 1907 e 1917” (em conjunto com Carlos
Augustus Jourand).
Saiba Mais –
Bibliografia - Fonte: Biblioteca
Nacional -
KUSHNIR,
Beatriz. Baile de Máscaras – Mulheres judias e prostituição: as polacas e suas
associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
MENEZES, Lená
Medeiros. Os estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
PRIORE, Mary
Del (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
Acredito que todos somos seres humanos, prostitutas, gays ou lésbicas, a policia devia e deve ter resolvido o problema de todas as prostitutas que eram enganadas através de notas falsificadas. Concordo plenamente com Evaristo que deve ser considerado que grande maioria das prostitutas só continuam vendendo seu corpo pela falta absoluta de salario.
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