Mil e uma utilidades
A relação de amor e
ódio dos homens com os animais chamou a atenção de diversos pensadores
Mary Del Priore*
O cão é
considerado o melhor amigo do homem, enquanto a formiga saúva já foi chamada de
um dos principais “males do Brasil” pelo poeta Mário de Andrade (1893-1945).
Tanto o cachorro quanto a formiga são seres irracionais, que se preocupam em se
alimentar e se reproduzir, mas a função que receberam ao longo dos anos fez com
que fossem considerados bons ou maus. No Brasil não poderia ser diferente.
Desde o início da colonização, a percepção sobre a “bondade” ou a “maldade” de
determinados animais vem sendo forjada com base na sua utilidade para o homem.
O sociólogo
Gilberto Freyre (1900-1987) observou como os bichos-de-pé eram considerados
maus porque furavam os dedos dos homens. Os carrapatos e as varejeiras não
diferiam muito, já que perseguiam o gado. A esperança-de-boca-preta
representava agouro e a de-boca-vermelha, felicidade. Os habitantes do Brasil
antigo aceitavam os papagaios em casa, mas os periquitos precisavam ser
espantados a toda hora. Os urubus, apesar de feiosos, eram bem-vindos porque
limpavam o lixo, enquanto os morcegos maltratavam os cavalos dos senhores de
engenho.
Freyre chegou
a atribuir valores aos animais levando em consideração utilidades pouco
ortodoxas. As lagartixas e rãs, por exemplo, eram toleradas perto de casa
porque serviam para os meninos se divertirem brincando com elas. O sapo também
era alvo das crianças, porém malvisto pelos adultos, que o consideravam um
bicho de feitiçaria. Além de suas funções mais comuns, cabras, galinhas e vacas
também serviam para a iniciação sexual de meninos do interior.
No século XVI,
já havia registros da presença no Brasil de “todos os animais domésticos e
domáveis da Espanha”, como observou o cronista português Gabriel Soares de
Souza (1540?-1591). Mas antes do Descobrimento, os índios não conheciam esses
bichos e nem tinham o costume de criar para o abate. Seu sustento era tirado só
da caça e da coleta.
Não demorou
muito para que os nativos adotassem os animais trazidos pelos europeus, como o
porco manso, que ganhou até nome indígena: taiaçu-guaiá. Os cães, chamados de
“onças de criação” ou iaguás-mimbabas, passaram a ser usados para desentocar a
caça e alertar sobre a chegada de inimigos. As galinhas fizeram tanto sucesso
que em pouco tempo os índios já vendiam ovos aos portugueses. Muito diferente
do primeiro contato com a ave, como relata a carta de Pero Vaz de Caminha:
“mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a
mão”. Montados pelos guaicurus, que viviam na região do Pantanal, os cavalos viraram
instrumentos de guerra.
Se os índios
ainda precisaram se adaptar aos cavalos, os africanos que vieram como escravos
para o Brasil não tiveram essa necessidade. Eles já estavam familiarizados com
o animal. Os negros que vinham da faixa de terra banhada pelos rios Senegal e
Gâmbia, na África Ocidental, chegaram a ganhar elogios do capitão cabo-verdiano
André Álvares de Almada (1555?-1650), que os considerou “bons cavalgadores, boa
gente de guerra”. Seus cavalos vinham do norte da África, onde eram trocados
por mercadoria, principalmente escravos. Cada animal custava de dez a quinze
homens, o que mostrava seu valor não só como meio de transporte, mas também
como símbolo de ostentação – assim como ocorria na Europa.
Muitos cavalos
se espalharam pela América do Sul após a destruição de Buenos Aires pelos
índios em 1541. Esses animais, que deram origem à raça crioula, passaram a ser
criados principalmente no sudoeste do Rio Grande do Sul, onde havia muito pasto
e água. No período colonial, Minas Gerais se destacava como centro criador de
equinos com a chegada da raça alter, e mais tarde, no século XIX, com o
manga-larga marchador.
Os bois também
chegaram cedo ao Brasil, ainda no século XVI. Segundo o relato de 1587 de
Gabriel Soares de Souza, foi Ana Pimentel, mulher de Martim Afonso de Souza
(1500-1571) – donatário da capitania de São Vicente e governador da América
portuguesa de 1542 a 1545 –, quem importou os primeiros exemplares de bois,
vacas e bezerros. Os jesuítas também introduziram o gado no Rio de Grande do
Sul para alimentar suas aldeias, e os franceses fizeram o mesmo no Nordeste.
As manadas
cresceram a tal ponto que os pecuaristas nordestinos, em busca de mais espaço
para criação, entraram em confronto com os índios da região. Essa disputa por
terras deu origem a um conflito armado: a Guerra dos Bárbaros, no Rio Grande do
Norte, que começou em 1651 e só terminou em 1704.
Já no século
XVIII, a mula se tornou um meio de transporte mais comum. Estável nas trilhas,
capaz de suportar peso e com a vantagem de comer de tudo, esse animal virou
fonte de renda para os tropeiros que percorriam o Sudeste. Resultado do
cruzamento do jumento com a égua, a mula foi tão importante para a economia que
ganhou reconhecimento do próprio rei José I (1714-1777) em Carta Régia.
Os porcos
também eram usados para a alimentação. Já as cabras davam carne e leite às
famílias de lavradores. O único risco era seu apetite por brotos de cana, como
relatava André João Antonil, pseudônimo do jesuíta italiano João Antônio
Andreoni, no livro Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, de
1711.
Se esses foram
os animais “bons”, não faltaram os “maus”. As formigas de apetite devastador
eram tantas que o inseto ganhou o apelido de “rei do Brasil”. O médico holandês
Guilherme Piso (1611-1678) as acusou de cavarem a terra como toupeiras e
comerem insetos venenosos. A forma mais comum de combatê-las era a pior para a
natureza: queimando a mata.
Além das
formigas, os gafanhotos e os cupins não davam sossego. Havia ainda o “verme
negro” ou pão-de-galinha, espécie de larva de besouro que atacava o maior
investimento da Colônia nos séculos XVI e XVII: a cana-de-açúcar. Já as
lagartas devoravam os pés de fumo, e a cangapara, ou percevejo-do-colmo, não
dava trégua aos arrozais. Outro grande perigo eram os ratos, que espalhavam
doenças, atacavam a colheita nos estoques e destruíam os milharais.
Alguns bichos
eram temidos não por prejudicar as plantações, mas por representarem perigo
para o próprio homem. Trabalhando sem o calçado adequado e às vezes até
descalços, os lavradores e escravos eram frequentemente atacados por cobras.
Esses répteis costumavam ser chamados de “espantosos” e “medonhos”. A boicupenga
foi descrita pelo padre português Fernão Cardim (1549-1625) como “tendo
espinhos pelas costas”. O médico Guilherme Piso se referiu até a uma cobra que,
“metida a extremidade da cauda no ânus de um homem, causa-lhe imediatamente a
morte”.
Além das cobras,
outros bichos amedrontavam os homens que trabalhavam nos canaviais: lacraias,
aranhas, escorpiões. As picadas das vespas “que fazem ninhos nas árvores e
gostam de perseguir os gados e os viajores” eram consideradas mortais, segundo
Guilherme Piso.
Alguns males
provocados por esses animais não passavam de lendas, como a crença na
existência de serpentes voadoras e de duas cabeças. As histórias envolviam até
mesmo os animais domésticos. O antropólogo Câmara Cascudo (1898-1986) escreveu
sobre a crença de que matar um gato dava sete anos de azar e acabar com a vida
de um cão tornava o assassino devedor de São Lázaro. Acreditava-se que bois,
ovelhas, perus e patos tinham boa memória e conseguiam contar seus segredos a outros
bichos da mesma espécie.
No Brasil, e
mesmo em Portugal antes de 1500, acreditava-se que os bichos tinham linguagem e
organização, usando como exemplo o fato de as colônias de formigas e cupins
obedecerem a reis e rainhas. Não faltava imaginação para explicar certas formas
da natureza: o morcego nascia de ratos velhos; o gafanhoto era uma metamorfose
de galhos secos; e a enguia, um fio de rabo de cavalo caído na urina humana. Já
o burro teria orelhas grandes porque não decorou seu nome e Deus as puxou com
força.
O homem
reconheceu os animais “bons” espalhando-os pelo mundo. Só no Brasil, as cabeças
de gado já passam de 200 milhões, segundo números de 2009 do IBGE. A
Organização Mundial da Saúde estima em 20 milhões o número de cães no país. Já
os bichos “maus” não contam com o mesmo “incentivo” e só continuam existindo à
custa de muito esforço da natureza.
Os valores
dados pelos homens aos animais são tão fortes que até se tornam adjetivos,
ainda que nem sempre correspondam à sua “utilidade”. Se fosse assim, não seria
ofensivo chamar alguém de burro, cachorro ou cavalo, já que esses animais
fizeram tanto pelos seres humanos.
Mary Del
Priore é professora de História da Universidade Salgado de Oliveira e autora,
com Renato Venâncio, de Uma história na vida rural no Brasil (Ediouro, 2006). Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional.
Saiba Mais -
Bibliografia
FERREIRA,
Alexandre Rodrigues. Viagem ao Brasil. Rio de Janeiro: Kapa Editorial, 2007.
FREYRE,
Gilberto. Pessoas, coisas e animais. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1981.
LEONARDI,
Victor. Entre árvores e esquecimentos: História social nos sertões do Brasil.
Brasília: Editora da UnB/Paralelo 15 Editores, 1996.
LINHARES,
Maria Yedda; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. História da agricultura
brasileira: combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1981.
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