Racismo em alta mancha
reputação da França
O 'país dos direitos
humanos' foi a única democracia que proibiu manifestações em defesa dos
palestinos, que vivem numa verdadeira 'prisão a céu aberto.'
Leneide Duarte-Plon, de Paris
A França foi até pouco tempo
considerada como um exemplo a ser seguido no continente. Não é mais. No
relatório do comissário para os direitos humanos do Conselho da Europa,
divulgado na terça-feira, 17 de fevereiro, o país passou a figurar na lista dos
que sofrem "deterioração da coesão social".
Ser criticada em razão do "recuo
da tolerância" e pelo "aumento de agressões verbais e demonstrações
injuriosas com caráter odioso ou discriminatório" é um duro revés. Afinal,
a França cultivava o histórico orgulho de ser "o país dos direitos
humanos", epíteto sempre lembrado por jornalistas e políticos, em
referência à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, elaborada
logo depois da Revolução Francesa pela primeira Assembleia Nacional
Constituinte francesa.
O comissário Nils Muiznieks, nativo
da Letônia e diplomado em Ciências Políticas pela Universidade de Berkeley
(EUA), pondera em seu relatório de 52 páginas que o antissemitismo e a
islamofobia são muito graves em todos os países europeus que passaram pelo
exame da Comissão de Direitos Humanos. Na França, contudo, esses dois tipos de
racismo são mais graves e os casos mais numerosos porque o país reúne a maior
população de judeus e de muçulmanos do continente, cerca de 600 mil para o
primeiro e 6 milhões para o segundo grupo.
Na França, a coexistência de judeus e
muçulmanos é muitas vezes explosiva, sobretudo por causa da ferida exposta pelo
sexagenário conflito palestino-israelense, cada vez mais agudizado pela
progressiva ocupação israelense dos territórios palestinos da Cisjordânia.
O comissário não mencionou em seu
relatório, mas durante os bombardeios a Gaza, em julho do ano passado, o
"país dos direitos humanos" foi o único Estado democrático no mundo
que proibiu manifestações em defesa dos palestinos de Gaza, que vivem numa
verdadeira "prisão a céu aberto", segundo organizações de direitos
humanos insuspeitas. Em total desacordo com suas tradições de liberdade de
expressão, o governo francês não deu autorização às manifestações em Paris, que
não eram promovidas por muçulmanos, mas por partidos de esquerda e por cidadãos
franceses pró-palestinos de diversas origens. O primeiro-ministro Manuel Valls
justificou, sem convencer, que o país não podia importar para território
francês o conflito Israel-Palestina. A tampa na panela não impede as vivas
tensões: os simpáticos à causa palestina entenderam a proibição como um parti
pris pró-israelense da parte do governo francês.
O atentado de janeiro contra um
supermercado casher e outros atos anti-semitas recentes, assim como mais de uma
centena de agressões a mesquitas somente este ano, comprovam que a mobilização
nacional contra o racismo que o presidente François Hollande vai anunciar em
breve é mais que oportuna.
Entrevistado pelo Le Monde, o
comissário para os direitos humanos do Conselho da Europa disse que, ao
reconhecer como um tipo de "apartheid" a exclusão de que são vítimas
os moradores das banlieues, o primeiro-ministro Manuel Valls fez uso de um
verdadeira arma de eletrochoque, prova de vontade política de atacar o
problema.
Paradoxalmente, foi o mesmo Valls
que, em setembro de 2013, ainda como ministro do Interior, declarou que
"os ciganos (roms, em francês) têm vocação para voltar à Romênia ou à
Bulgária e para isso é preciso que a União Europeia, com autoridades desses
países, encontre um meio de integrar essas populações em sua terra de
origem". Esse mesmo governo do primeiro-ministro Valls se orgulha de ter
aumentado as expulsões de terrenos ocupados ilegalmente pelas populações ciganas
e o envio aos países de origem dos que não têm documentos franceses.
A banalização do discurso
discriminatório na França em relação a certas minorias – a mais visada é a
comunidade de franceses muçulmanos – na boca de diversos políticos franceses,
de esquerda como de direita e de extrema-direita, foi apontada pelo comissário
de Direitos Humanos do Conselho da Europa como altamente preocupante. Segundo
ele, esse tipo de linguagem envia um sinal à polícia, aos funcionários e aos
cidadãos de que o discurso racista pode ser assimilado pela sociedade. Os
policiais são frequentemente acusados de violência no tratamento com migrantes,
vindos do mundo inteiro, que vivem ilegalmente em Calais, na esperança de
atravessar o canal para chegar à Inglaterra.
Mesmo no que diz respeito à acolhida
de exilados sírios que buscam a Europa fugindo da guerra, o comissário mostra
como a França está longe de sua tradição de "terra de asilo". Em
2015, o país acolherá apenas 500 sírios, o mesmo que em 2014, enquanto a Alemanha
deu asilo a 10 mil sírios no ano passado.
Evidentemente, a França não foi o
pior aluno entre os países europeus, na visão da Comissão de Direitos Humanos.
Mas já teve melhores notas. O relatório anterior, datado de 2006, apontava o país
como o berço dos direitos humanos na visão de muitos europeus. E constatava que
ele oferecia "um alto nível de proteção aos direitos humanos".
Apesar de todas as reservas, Nils
Muiznieks pensa que a França tem uma excelente legislação e mais instrumentos
para implementar uma política de igualdade que a maioria de seus vizinhos.
Entre muitas críticas, o relatório abre outra exceção: considera excepcional o
trabalho das associações humanitárias.
Com o mesmo número de páginas, um
relatório do governo francês respondeu às acusações sem, contudo, conseguir
justificar todas as críticas apontadas no texto do Conselho da Europa.
Fonte: Carta Maior - http://www.cartamaior.com.br/
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